A Psicologia já passou por várias fases de evolução, desenvolveu diferentes perspectivas de compreensão do humano no mundo e incontáveis recursos de intervenção. Mas a realidade está mudando. E como fica a Psicologia nessa interface com o mundo 4.0?
O desenvolvimento tecnológico acelerado está levando a mudanças do jeito de ser das pessoas e de interagir com a realidade. A internet é uma verdadeira enciclopédia à mão para tirar dúvidas e nos ajudar a fazer escolhas; nossos smartphones podem até medir nossos batimentos cardíacos. As mudanças abrangem tantas áreas das nossas vidas, que tempos atrás surgiu aquele questionamento que já se tornou comum: estaria o humano perdendo espaço para a tecnologia? Os Psicólogos seriam substituídos por inteligências artificiais? Eram os nossos olhares lançando-se para o futuro… O que está por vir no futuro da Psicologia? Ele será próspero ou vai cair nos braços da obsolescência?
A Psicologia É e NÃO É a profissão do futuro? O que isso quer dizer?
Em 2018 saíram algumas pesquisas (Mapa do Ensino Superior, 2018; Fórum Econômico Mundial, 2018 e 2019*) apontando que a graduação de Psicologia estaria fadada ao fracasso no futuro. Para justificar essa perspectiva, os especialistas apontaram os protótipos de inteligência artificial, recursos de realidade virtual e aumentada e as pesquisas sobre biologia sintética e genética que prometem minimizar muitos dos efeitos dos adoecimentos mentais logo, logo. Uauuuu, tudo isso parecia fantasticamente curioso! Diante dessas notícias, nossa equipe precisava saber mais, então, fomos adiante nas pesquisas.
Encontramos mais pesquisas (Carl Frey, pesquisador de Oxford em: O futuro do emprego, 2013; Fórum Econômico Mundial, 2018 e 2019*) que apontavam exatamente o contrário. A Psicologia não estava apenas entre as profissões do futuro, mas era citada como “A PROFISSÃO DO FUTURO”. As justificativas giravam em torno dos dados da OMS que revelam a epidemia de depressão que assola a humanidade e revela nossas dificuldades emocionais e de adaptação ao novo. Essas pesquisas apontam a Psicologia como a ciência e profissão da inovação humana. E esse potencial profissional não está em técnicas, substituíveis por recursos tecnológicos, mas nas conexões humanas relacionais, essas, sim, são indispensáveis para o futuro. Em síntese, os recursos tecnológicos liberariam o humano dos trabalhos mecânicos para apenas “ser” humano e despertar seus potenciais, até então inexplorados pelo nosso jeito atarefado de viver.
Assim como nós, vocês devem pensar, puxa vida, mas ambas são referências bem fundamentadas, como podem levar a perspectivas de futuro tão diferentes para a Psicologia. Essa também foi uma questão que nos intrigou e, curiosas que somos, fomos adiante mais uma vez… Até que, voilá, chegamos a uma compreensão! Essas pesquisas adotam concepções de Psicologia distintas!
Dois paradigmas da Psicologia
Chegamos à conclusão de que a Psicologia a qual as pesquisas alertam sobre a possibilidade do fim, corresponde ao paradigma da Psicologia cujo objeto de estudo é o comportamento, ou aspectos psicológicos mensuráveis. Portanto, baseia-se no paradigma do diagnóstico que leva a um tratamento, com recursos técnicos interventivos específicos e pré-definidos. Também entram nesse paradigma aquelas perspectivas da Psicologia que explicam a origem dos comportamentos, que interpretam as expressões das pessoas para chegar ao entendimento do que causou comportamento X ou angústia Y.
Com essa compreensão, passou a fazer sentido uma perspectiva de futuro ameaçada pela tecnologia. Já temos computadores e robôs capazes de fazer análises de expressões faciais, de realizar cálculos estatísticos de expressões verbais que fornecem respostas e explicações precisas sobre o que uma pessoa fala. Não seria muita novidade que, em breve, essas tecnologias forneçam diagnósticos e recomendem tratamentos e exercícios de superação das adversidades encontradas, não é?
Já as pesquisas que apontam a Psicologia como a profissão do futuro descrevem um paradigma baseado na compreensão de um humano capaz de se transformar continuamente. Uma Psicologia que aposta no potencial das relações interpessoais, conectadas por afetividade e por uma experiência que transcende a capacidade lógica de explicar. Segundo esta visão de humano no mundo, a humanidade é plenamente capaz de desenvolver uma percepção da diversidade e da igualdade que nos une em uma única comunidade. É daí que nasce uma consciência ética e ecológica, capaz de criar e usar tecnologias fantásticas a serviço da vida e não do proveito pessoal ou do abuso dos recursos naturais.
Esses dois paradigmas, completamente divergentes, nasceram com a própria Psicologia. De um lado, a Psicologia que veio dos laboratórios, com experimentos de comportamento animal. Uma base neurofisiológica, de treinamentos de comportamentos observáveis ou explicáveis por hipóteses a serem validadas. Do outro lado, a Psicologia que nasceu do desejo de não mais pesquisar as doenças, mas sim a capacidade de realização humana. Que apostava nas relações, sentimentos e atitudes e considerava que a ciência tradicional não foi feita para compreender a humanidade.
Esta dicotomia existe desde o fim do século XIX, início do século XX. A questão é que parece que a imposição de um futuro disruptivo, pode marcar uma mudança nessa coexistência em paralelo.
Um visão de futuro realizadora
Essas reflexões nos fizeram revisitar um texto de Carl R. Rogers, que foi publicado em seu livro Um Jeito de Ser (1983) chamado “O mundo do futuro e a pessoa do futuro”. Parece que ainda faz sentido pensarmos que “…, neste momento, estamos atravessando uma crise transformacional, da qual nós e o nosso mundo não sairemos mais os mesmos (p. 123).
Fizemos muitas descobertas de lá para cá e não temos dúvida de que as criações humanas dos últimos tempos continuam ampliando a compreensão do potencial humano, das relações humanas e da realidade.
Hoje sabemos que ser pessoa é um processo que se dá em um contínuo e não em um somatório de aprendizagens e comportamentos adaptáveis. Isso nos deu uma bela oportunidade de ultrapassarmos as fronteiras dos comportamentos preestabelecidos para passarmos a conviver com as inúmeras possibilidades de atitudes humanas.
E já podemos ver os efeitos dessa perspectiva em várias campos da nossa sociedade. Usemos como exemplo o campo da Educação e os conceitos de aprendizagem significativa, aprendizagens ativas e metodologias ativas. Pois é! São propostas que colocam a pessoa no centro do seu processo de aprendizagem, fazendo com que ela tenha a oportunidade de localizar os seus interesses e necessidades do momento. Assim, ela passará a ser um pesquisador ativo do conhecimento que permitirá a continuidade do seu desenvolvimento.
Onde tudo isso irá nos levar se escolhermos seguir esse caminho?
“Tomadas em conjunto… Esta pessoa possui um potencial jamais sonhado até agora. A inteligência inconsciente desta pessoa é extremamente capaz. Consegue controlar diversas funções do corpo, curar doenças, criar novas realidades. Pode penetrar no futuro, ver coisas a distância, comunicar pensamentos diferentes. Essa pessoa tem uma nova consciência da sua própria força, de suas capacidades e de seu poder, uma consciência de si como um processo de mudança. Esta pessoa vive num universo novo e onde todos os conceitos que lhe eram familiares desapareceram – tempo, espaço, objeto, matéria, causa, efeito” (Rogers, 1983, p. 128).
Nós escolhemos seguir esse caminho? E você? Qual caminho seguirá?
Quais as possibilidades e desafios da Psicologia do Futuro?
Embora seja apenas uma prospecção, não podemos negar, que uma Psicologia que compreende e prepara o humano para explorar suas possibilidades, com consciência e responsabilidade parece mesmo a profissão do futuro.
A machine learnig, a capacidade das inteligências artificiais de aprenderem a aprender, retroalimentando seus próprios processos de atualização, nos revela que o desenvolvimento tecnológico exponencial caminha a passos largos fora do alcance do que nossas conexões neuronais podem compreender. Bem, deixemos que a tecnologia caminhe. Enquanto isso, temos muito a fazer no que diz respeito ao desenvolvimento da humanidade. Temos motivos suficientes para considerar que o fator humano é o X da questão!
Já entendemos que o comportamento é o ponto final dos processos humanos. Mas há muitos processos antes dele. Então, não nos adianta controlar, lapidar e reprogramar a ponta do iceberg. Precisamos olhar para o que existe antes.
Tudo começa com a percepção, a captação de uma experiência e o seu processamento. Podemos perceber uma mesma experiência de formas completamente diferentes. Isso quer dizer que nossa percepção pode não captar todos os elementos necessários para uma compreensão ampliada. É da nossa percepção que simbolizamos experiências, que atribuímos significados para o que vivemos. E então sentimos os mais variados tipos de sentimentos, dos mais básicos aos mais complexos.
Sabe aonde a simbolização de percepções parciais nos leva? A compreensões distorcidas, desconfianças nas relações e até a conflitos, desentendimentos e rompimentos. É aqui que estão os comportamentos, no fim do processo.
É com base nessa compreensão dos processos humanos que podemos afirmar: as possibilidades da Psicologia estão lado a lado com as possibilidades do humano! E se desejamos ajudar a humanidade a caminhar para o futuro lado a lado com o desenvolvimento tecnológico, nossas possibilidades estão na ampliação da percepção, na transformação do significado das experiências, para então chegarmos a comportamentos e relações em prol de um bem comum.
Não sabemos o que nos espera no futuro, mas podemos caminhar lado a lado uns dos outros, como humanidade que criou toda a evolução tecnológica. Podemos usá-la a nosso favor, mas precisamos resgatar nosso senso de humanidade e potencializar os recursos genuinamente humanos. É assim que a Psicologia pode ajudar!
E nosso maior desafio é romper o status quo de que nossa percepção é a correta e não precisa ser revisitada. Estamos sempre em transformação: Qual é a sua?
* Observem que um mesmo relatório serve de base para conclusões opostas. Isso aconteceu exatamente porque os especialistas reconheceram que a Psicologia apresenta dimensões distintas.