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Como viver com a presença da morte?

“A consciência da finitude nos ensina a viver”

(Irvin D. Yalom)

Nestes dias me peguei pensando sobre seguro de vida, plano de proteção familiar. Achei curioso; porque será que estes pensamentos estavam rondando minhas ideias? Como num clique, percebi que a consciência da minha própria finitude estava forte. Não demorei para perceber que se tratava de um processo pelo qual muitas pessoas estão passando, embaladas pela onda da pandemia de covid-19.

O risco de perda de pessoas próximas e o risco da própria morte nos relembra que a vida tem um fim para todos. Me perguntei: como será que vocês estão vivendo essa realidade? Vamos refletir sobre essa tal de finitude, como ela conversa com nossos pensamentos e como lidar com ela.

O que é essa tal de consciência da finitude?

Todo mundo já ouviu falar, ao menos uma vez, que a única certeza que temos é que vamos morrer um dia. Mas saber disso racionalmente, no cenário dos pensamentos, não é o mesmo que ter consciência da nossa própria finitude. A consciência da própria morte é algo que se experimenta nas situações da vida. É algo que se desenvolve todos os dias, diante de cada escolha.

Sempre quando acordamos e começamos um novo dia, na verdade, não temos certeza de que acordaremos em um novo dia, amanhã. Muitas coisas podem acontecer em 24horas. Quando escolhemos o que comer, o que fazer e o que dizer a alguém, também não sabemos se teremos a oportunidade de experimentar novamente aquela sensação, ter outra vez aquele sentimento, mas raramente vivemos de fato com esta noção. Sabe por quê? Porque é muito indigesto. Agora mesmo, não se assuste se você estiver sentindo um embrulho no estômago e uma vontade danada de parar de ler essas linhas.

Não são poucas as formas que encontramos de driblar esta consciência. A própria frase de que todos já sabemos disso é uma forma de dizer assim: “Ok, já sei disso! Agora me deixe voltar a viver como se não soubesse!”. Isso sem falar nas superstições que dizem que se falarmos sobre a morte, vamos acabar atraindo-a. E assim acumulamos séculos de expertise em driblar a nossa finitude, criando novas compreensões, convenções e hábitos.

No entanto, alguns eventos da nossa história, como as grandes Guerras Mundiais, as catástrofes ambientais e, atualmente, a pandemia de covid-19, nos colocam cara a cara com a existência do fim da linha da vida. São momentos dolorosos, mas que nos permitem trazer à tona discussões sobre a vida e a morte e alimentam movimentos que incentivam a conversa livre e aberta sobre a morte como um processo natural da vida. E que, inclusive, a consciência da morte pode nos ajudar a viver melhor.

Se você já está sentindo uma certa curiosidade sobre o assunto, pode valer apena conhecer movimentos como o Deth café e A morte no jantar. São encontros para conversar sobre a morte que literalmente ajudam a digerir esse assunto indigesto. Mas se você ainda sente medo de conversar abertamente sobre a morte e compreender o sentido dela na sua vida, as reflexões a seguir podem ajudar.

Por que temos tanto medo da morte?

Recebemos de herança das gerações passadas a morte como algo assustador, sem luz, que desperta medo. Contraditoriamente, assistimos toda a natureza entrar em ciclos ininterruptos de início e fim: o dia que termina na noite, a semente que se transforma em árvore e volta a ser adubo, as estações que vão do calor ao frio extremo. E nós, humanos, somos a única espécie capaz de ter consciência destes ciclos, mas ainda não sabemos muito bem como usá-la, tamanha a distância que mantemos dela.

Temos tanto medo porque a própria condição de compreender tudo isto está fadada ao fim. Em algum momento, não estaremos mais tentando driblar a proximidade do fim. Nossa individualidade, nossa identidade, a resposta à frase: Quem sou eu? Não poderá mais ser respondida. Conviver com a iminência da perda da nossa individualidade traz o sentimento de vulnerabilidade. É compreensível o porquê de fugirmos tanto dessa convivência com a finitude, não é mesmo? O que gostaríamos na verdade é de nos sentirmos imbatíveis e viver para sempre.

Muitos cientistas do mundo se debruçam sobre estratégias de garantir longevidade à nossa espécie. E os avanços são grandiosos aponto do cientista britânico Aubrey De Grey afirmar que acredita que já nasceu o humano que viverá até os 1.000 anos. É claro que há controvérsias, mas o fato é que a biotecnologia pode sim expandir a vida humana.

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Com 80, 120 ou 1000 anos, ainda assim, estaremos diante de um desafio: a vida mais cedo ou mais tarde chega ao fim. Então precisaremos desenvolver formas, não só de expandir nosso tempo cronológico mas a qualidade do nosso tempo de vida. E para isso, apostamos que viver todos os dias com a consciência de que o fim pode chegar hoje é o primeiro passo para expandir nossa capacidade de viver potencialmente.

E se eu dissesse que há uma forma de que nossa existência continue viva? Pois é, isso é possível! Mas não da forma tradicional. Vamos precisar quebrar alguns paradigmas.

3 reflexões que podem mudar sua relação com a própria morte

Bem, se você chegou até aqui na leitura deste texto, quer dizer que já driblou muitos mecanismos de fuga. Isso é uma amostra do processo diário que experimentamos quando escolhemos viver com consciência de que a morte pode chegar a qualquer momento. E se ainda restam dúvidas sobre o porque de se viver mantendo esta consciência, você pode imaginar quanto poderia realizar, se não estivesse gastando seu tempo e energia empenhado em se manter ativamente afastando da sua consciência a realidade do fim das coisas.

É isso mesmo. Esta consciência é capaz de potencializar sua capacidade de viver. Mas sabemos que esta não é uma tarefa fácil, então vamos fazer uma reflexão em 3 pontos que podem ajudar:

1. Competência existencial: viver todas as experiências da vida com a consciência da finitude fará com que você experimente sensações e sentimentos intensos, dos mais desconfortáveis, como medo e insegurança, até os mais saborosos, como sentir o valor da vida e os sabores que ela pode proporcionar. Sentir a vida enquanto ela existe e saber que não existirá para sempre nos coloca diante de um turbilhão que precisaremos gerenciar com precisão e cuidado. Podemos chamar isso de competência existencial, uma noção nítida de que você tem uma vida, por um período de tempo e que precisa gerenciá-la com toda sua competência.

2. Vida em comunidade: Se pensarmos na nossa existência como algo que se finaliza em si, então a finitude será absoluta. Essa consciência de fim pode gerar isolamento e reclusão. Mas se você observar com atenção, vai perceber que toda vez que você toca a existência de uma outra pessoa, ela o carrega com ela. Isso quer dizer que não é apenas a genética que nos perpetua, mas também a nossa existência se transmitirmos reflexões, sentido de viver, afeto. Podemos continuar existindo através do nosso legado. E então, que legado você quer deixar como fruto da sua existência?

3. A vida precisa de um sentido: A junção da competência existencial com a noção de que sua identidade faz parte de um todo, levará à construção do sentido para viver. Você não precisa ter apenas um sentido na sua existência, mas, talvez, precise encontrar sentido para fazer suas escolhas e atividades diárias. Aos poucos, o que observamos surgir é que a própria vida é o sentido e ela contém a sua existência.

Como diria a sabedoria da natureza do I-Ching:

“As estrelas do céu nos mostram que existem coisas muito profundas que são inalcançáveis e ultrapassam os limites humanos. Elas são realidades que nos falam do infinito, do eterno, do transcendente, não para nos frustrar ou nos diminuir, mas para tê-las como guia, para dar maior sentido à nossa vida, à nossa viagem pela existência. E, principalmente, para nos permitir navegar por mares interiores de horizontes amplos aos quais não teríamos coragem nem condições de ir se não fosse por suas orientações confiáveis e constantes.” (Roberto Otsu)

Podemos aproveitar os tempos de introspecção e reflexão para navegar nos mares da nossa existência. Vamos navegando juntos, e se quiser conversar um pouco mais sobre suas rotas, estaremos por aqui!

Maira Flôr

Maira Flôr

Psicóloga, CRP 12/08932

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