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Por que o Milagre da Cela 7 faz tantas pessoas chorarem?

Tempos de isolamento social e mais uma vez estamos experimentando como a arte pode nos ajudar a lidar com a vida. Filmes estão sendo vistos mais do que nunca! E nas últimas semanas um dos top 10 da Netflix, que chegou a ocupar o primeiro lugar é o“Milagre da Cela 7”. Mas como um filme internacional, sem uma produção hollydwoodiana, emocionou tantas pessoas? O que de fato ele desperta em nós?

O “Milagre da Cela 7” ficou tão popular por emocionar pessoas, que decidimos desvendar esse mistério. E então, vamos brincar de: “lingo lingo” “Garrafas”?

Já deu para perceber que esse blog vai estar cheio de spoilers não é? Então, se você ainda não assistiu ao filme, sugerimos que atenda a esse alerta de spoiler e corra lá para assistir antes de continuar sua leitura. Nós vamos primeiro entender a trama, para, em seguida, compreender as emoções humanas, com todo o afeto que o filme nos desperta.

Como entender a trama do filme?

O “Milagre da Cela 7” é um filme turco, uma refilmagem de um sucesso sul-coreano de 2013 que mostra uma trama, onde Memo (Aras Bulut Iynemli), um homem jovem com déficits cognitivos, é injustamente acusado pela morte de uma criança, colega de escola de sua filha Ova (Nisa Sofiya Aksongur). A menina, que na verdade sofreu um acidente fatal, é filha de um alto comandante do Exército, que tomado pelo desespero, ódio e poder passa a manipular informações a seus oficiais para condenar Memo à morte por enforcamento.

Antes do incidente, Memo e Ova viviam com a avó, Fatma (Celile Toyon Uysal), já que a mãe de Ova havia morrido no parto. Memo era pastor de ovelhas e, mesmo com um desenvolvimento cognitivo baixo, seguia as instruções da avó, mantendo suas atividades de trabalho e de cuidados com Ova de uma forma tão afetuosa, que chega a impressionar, tamanha capacidade de amar.

Observem, Memo chamava sua mãe de avó, assim como Ova, porque de fato tinha uma relação de igual para igual com Ova. Em uma cena na qual Ova questiona a avó sobre porque Memo é diferente dos pais das outras crianças, e a avó diz: “Seu pai na verdade tem a sua idade”. Com expressão de surpresa, Ova parece compreender e aliviar seus questionamentos definitivamente.

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Memo e Ova têm uma conexão afetiva regada a brincadeiras e jogos de imaginação que ajudam Ova a desvendar pistas ao longo da trama, que levaram a uma testemunha da inocência de Memo. Mas, mesmo com todo o esforço da descoberta, não foi isso que salvou a vida de Memo. O que poupou sua vida foi exatamente o que emociona profundamente quem assiste ao filme: a conexão humana! Você pode estar se perguntando: como assim? Vamos explicar.

O que as relações podem despertar?

Memo passa um período na prisão, na Turquia da década de 80. Ele foi parar justo na sela 7, onde, dentre os prisioneiros, estavam tipos como Askorozlu (Ilker Aksum), um líder mafioso responsável por múltiplos assassinatos e Yusuf (Mesut Akusta), um senhor isolado, que passava horas olhando para uma mancha na parede, claramente revivendo sua culpa pelo crime de ter matado a própria filha. Memo passa por muitas agressões e dificuldades até que seus colegas de cela e até o diretor do presídio Nail (Sarp Akkaya) entendessem que ele tinha uma deficiência intelectual. Aos poucos, Memo vai tocando os corações de cada um, com ações simples de sinceridade, lealdade e respeito afetuoso por cada um.

Mas por que as atitudes de Memo são tão surpreendentes para as pessoas? Porque ele está no lugar representativo dos desvios humanos, onde imperam os desejos individuais e o hábito de tirar vantagens por meios ilícitos. Mas Memo não apresenta essas características.

Ova visita Memo

A condenação de Memo vai se aproximando e, como um presente pela relação de afeto que construíram e em reconhecimento pela inocência de Memo, os prisioneiros se organizam para trazer Ova para uma visita a Memo. E esta visita acabou se transformando em uma das cenas mais tocantes do filme.

Já dentro da sela 7 e entendendo que todos estavam ali porque tinham que se curar de alguma “doença”, Ova questiona a todos os prisioneiros: “Qual a sua doença?” E todos se veem no desafio de confrontar seus crimes com a inocência de uma criança. Certamente a presença de Ova e sua relação com Memo “curaram” muitas das “doenças” que encontraram, apenas pela simplicidade de se relacionar com o humano que existe em cada um, independente dos seus atos ou desvios comportamentais.

Mas o maior impacto dessa cena é quando Ova se aproxima de Yusuf e desvenda o que ele enxerga em uma mancha na parede para a qual olha fixamente na maior parte do tempo. Era como ver formas em nuvens. A mancha era a árvore onde Yusuf viu sua filha morrer. Era mais um curado de sua doença pela compreensão. Essa relação foi tão significativa que Yususf se voluntariou para ser enforcado no lugar de Memo.

Todos participaram da trama para salvar Memo. A testemunha que Ova havia encontrado já tinha sido assassinada pelo alto comandante do exército e não havia outra saída a não ser forjar a morte de Memo, e assim foi feito. Prisioneiros, guardas e o diretor se uniram para preservar a vida de Memo e Ova.

A esta altura, quem assiste ao filme geralmente já está mergulhado em lágrimas, até mesmo as pessoas que não costumam chorar em filmes dizem que se emocionaram. Qual é o segredo?

O segredo está na humanidade

O filme desperta, de uma forma simples e muitas vezes previsível, a humanidade que existe em nós. É isso mesmo, passamos anos desaprendendo a ser humanos. Vivemos em uma sociedade complexa, com relações cheias de segundas intenções e intercaladas com medos, inseguranças e culpas. Como diria Bauman em uma entrevista:

“Vivemos tempos líquidos. Nada é para durar. Na sua forma ‘líquida’, o amor tenta substituir a qualidade por quantidade — mas isso nunca pode ser feito, como seus praticantes mais cedo ou mais tarde acabam percebendo. É bom lembrar que o amor não é um ‘objeto encontrado’, mas um produto de um longo e muitas vezes difícil esforço e de boa vontade.”

Poderíamos dizer que Memo e Ova não chegaram a se contaminar por essa dinâmica moderna, que reduz pessoas a objetos manipuláveis e que podem ser facilmente substituídos. Sua convivência foi construída com esmero e dedicação. E quando as pessoas entram em contato com a qualidade dessa relação, sentem-se despertadas, conectadas com sua capacidade de sentir afeto, de se relacionar sem estabelecer pré-condições para isso e nem prazo de validade. Não são apenas as personagens que são dessa forma, mas também nós espectadores.

Entenda o prisioneiro que existe em você!

Assim chegamos na realidade em que nos encontramos. Quem aqui é como o Memo, meus amigos? Poucos de nós têm uma “ficha limpa” sem erros dos quais nos arrependemos. E esse é outro ponto no qual o filme é certeiro: a possibilidade de fazermos novas escolhas e, usando a metáfora do filme,“nos curarmos das nossas doenças”. A mudança de atitude que cada personagem traz é simples e ao mesmo tempo grandiosa dentro da realidade de cada um. Desperta em nós a possibilidade de fazermos diferente. Até mesmo quando estamos condenados, ainda é possível nos “curarmos” e transformarmos nossos medos.

Não somos muito diferentes dos prisioneiros da Cela 7. Podemos até não ter cometido crimes, mas estamos “presos” num jeito de nos relacionarmos, com poucas possibilidades de encontros verdadeiros que nos façam sentir que não estamos sós, pertencemos uns aos outros, somos uma só humanidade.

É isso que esperamos da humanidade hoje. E o problema desta frase está apenas na palavra ”esperamos”. Passamos nossos dias automatizados em afazeres e inebriados por conquistas, geralmente na espera de que as pessoas sejam mais humanas.

Estamos em uma situação em que tudo que mais esperamos é que as dificuldades passem e nosso mundo se torne um lugar melhor para viver. Mas, como Memo e Ova nos relembram, depende apenas do ser humano para isso acontecer. Ao tocar o coração dos criminosos e militares, eles acordam a nossa esperança de que podemos construir um mundo melhor para ser vivido.

E a união improvável de pessoas que conseguiram juntas encontrar saídas para uma pessoa que sozinha não conseguiria ter estratégias, nos faz perceber que é possível. Cuidando uns dos outros, reconhecendo que precisamos encontrar saídas juntos renasce nossa capacidade de nos reinventarmos de forma mais ativa na transformação da realidade.

Então vamos celebrar o que aprendemos com o filme:

– Não existe arma mais poderosa para transformar uma vida humana do que uma relação significativa.

– Podemos acreditar na humanidade que existe em nós e ir em busca de nos relacionarmos com a humanidade que existe nas outras pessoas. Fazemos parte de uma mesma família.

– Não existem erros que definam uma pessoa. Enquanto houver vida haverá possibilidades de se reinventar.

Com essas aprendizagens sintetizadas, só nos resta desejar que você continue trabalhando para que sua humanidade continue acordada. Mas se você se distrair, estaremos por aqui como Ova e Memo, de vez enquanto chamando: “lingo lingo?”…

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Doralina Enge Marcon

Doralina Enge Marcon

Psicóloga, CRP 12/10882

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