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As alterações sensoriais no autismo.

Quando você imagina uma pessoa com autismo qual imagem lhe vem à cabeça? A imagem clássica é de alguém com as mãos nos ouvidos, balançando-se e sem olhar nos seus olhos. Não é à toa que essa é a imagem mais comum, apesar de não corresponder a todos os casos de autismo. Você sabe por quê? Tampar os ouvidos, balançar-se e não olhar nos olhos envolvem vários sentidos e pessoas com autismo experimentam os estímulos sensoriais de uma forma muito particular. Entenda melhor como é esse jeito de sentir o mundo no autismo!

Você já parou para pensar que o ser humano se relaciona com a realidade por meio dos sentidos? Que é através deles que recebemos as informações do mundo e interagimos com ele? E que são eles que nos ajudam a identificar riscos, tais como:

– o gosto da comida estragada;

– perigo iminente de um barulho alto;

– a sensação de dor que anuncia a emergência de um cuidado físico; e

– a sensação de equilíbrio que nos previne sobre a possibilidade de cair de um lugar alto.

Bem, tudo isso sem contar com o fato de que as sensações de bem-estar também são produzidas pelo nosso sistema sensorial. É assim que:

– relaxamos quando escutamos uma música agradável;

– sentimos prazer ao saborear uma comida deliciosa;

– nos emocionamos quando assistimos a filmes, vídeos, fotos e pores do sol; e

– sentimos o aconchego de uma cama macia ou de uma boa massagem.

Pois é! “Na prática, as informações sensoriais são o combustível que faz o cérebro funcionar” (Winnie Dunn).

A função dos VÁRIOS sentidos para o humano

É verdade! Nosso mundo está cheio de estímulos sensoriais que servem de alimento para o nosso cérebro. Por isso, a forma como captamos esses estímulos, e o que fazemos com eles, influencia diretamente o nosso jeito de interagir com o mundo.

Ao longo da nossa vida escolar aprendemos que existem cinco sentidos fundamentais: audição, visão, olfato, paladar e tato. E o que muitos de nós não sabem ou não se lembram mais é que existem mais quatro sentidos que também influenciam a nossa forma de estar no mundo. São eles:

  • Propriocepção: é responsável pela sensação de localização espacial, posição e orientação do corpo.
  • Nocicepção: é responsável pela sensação de dor e estímulos aversivos.
  • Termocepção: é responsável pela sensação de temperatura e suas variações.
  • Vestibular: é responsável pela manutenção do equilíbrio.

Ah! É bem provável que essa relação não seja tão desconhecida assim para você. Afinal, somos todos humanos e sabemos muito bem o que significa sentir os efeitos dessas sensações, não é mesmo?

Aparentemente, tudo estaria esclarecido se não fosse o fato de que cada pessoa precisa de uma quantidade diferente de informações sensoriais para processar o mundo e tomar as suas atitudes. Se o processo sensorial envolve modulação, discriminação, organização e coordenação dos sentidos, então a desorganização desse processo fará com que a pessoa receba estímulos de mais ou de menos. Nestes casos não seria possível organizar as sensações por intensidade, importância ou, até mesmo, de planejar e coordenar uma ação a partir do que sente.

Puxa! Isso nos ajuda a entender que, dependendo das circunstâncias e da condição das pessoas, estar no mundo pode ser muito confuso!

Autismo e suas características invisíveis

O autismo era considerado até 2012 um transtorno invasivo do desenvolvimento, sendo o autismo leve classificado como a famosa Síndrome de Asperger. Hoje com a quinta edição do Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V) o autismo está em todos os seus níveis (leve, moderado e grave) dentro de um espectro chamado Transtorno do Espectro do Autismo (TEA).

Suas características não são visíveis fisicamente como muitas síndromes e por isso é um diagnóstico complexo de ser realizado. Entendemos atualmente que a pessoa nasce com autismo, que as suas características são únicas e determinam um jeito de sentir e entender o mundo que, de uma forma geral, marcam a presença de três características básicas:

– dificuldade de socialização e comportamentos restritivos e repetitivos;

– dificuldade de comunicação relacionada ao domínio da linguagem; e

– dificuldade no uso da imaginação para lidar com jogos simbólicos.

Além dessas três principais características diagnósticas o autismo tem suas particularidades sensoriais. Isto quer dizer que, cada vez mais, as pesquisas têm demonstrado que pessoas com autismo costumam ter uma integração sensorial comprometida. De modo geral sabemos que para pessoas com autismo a recepção dos sentidos são uma bagunça! Parece um turbilhão de sensações, todas ao mesmo tempo!

Geralmente elas apresentam dificuldade no “filtro” sensorial, aquele que usamos para escolher deixar um estímulo de fundo para nos concentrarmos em uma conversa, e ainda resgatar o que estava de fundo quando for preciso. As hipo e hipersensibilidades estão presentes e variam em cada pessoa sobre quais sentidos são hipersensíveis e quais são hipossensíveis.

Esse jeito diferente de sentir causa reações atípicas frente à realidade, o que pode ser peculiar ou estranho aos olhos de muitos. Com frequência, nem mesmo a pessoa com autismo sabe explicar o que sente, e nem consegue perceber que na verdade seu desconforto é sensorial.

Um exemplo ilustrativo dos sentidos de uma criança com autismo

Já que cada pessoa com autismo é singular e os exemplos podem ser muitos, escolhemos uma personagem para que você possa passear pelo mundo sensorial do autismo.

A personagem escolhida foi a Caitlin, uma menina de 10 anos, protagonista do livro de literatura “Passarinha” de Kathryn Erkine. É bem possível que você não tenha lido esse livro e, por isso, começaremos dando algumas informações gerais sobre o perfil e as vivências da personagem.

Livro "Passarinha"

Caitlin acabou de perder o irmão mais velho assassinado. Era ele que a ajudava nas diversas situações em que se sentia desconfortável. Perdê-lo significou ter que aprender a interagir com um processo de luto e lidar com tudo que o irmão fazia por ela. Felizmente, ela tinha outras pessoas com quem contar. Seu pai e a terapeuta da escola ajudaram a desenvolver em Caitlin algumas habilidades sociais que ela não conseguia adquirir sozinha.

Como a história é uma narrativa da própria Caitlin é possível mergulhar na sua desorganização sensorial diante dos estímulos naturais do dia a dia e entender, por exemplo, a sua dificuldade de aproveitar a hora do recreio escolar.

“Eu não posso aproveitar porque estou cercada por uma gritaria estridente (estímulo auditivo) e tem luz demais (estímulo visual) e os cotovelos dos outros são pontudos e perigosos (estímulo tátil) e é difícil respirar e eu sinto meu estômago muito, muito embrulhado. Fico só parada e passo os braços ao meu redor como um campo de força e aperto os olhos até quase fecharem para tentar trancar tudo do lado de fora (estímulo proprioceptivo). Não funciona”.

Ufa! Na sua percepção são muitos estímulos sensoriais intensos para sentir de uma vez só, não é mesmo? Isso nos faz pensar que nossa personagem, além da desorganização causada pela diversidade estímulos sensoriais, experimenta hipersensibilidade em alguns dos sentidos.

Basta uma observação um pouco mais detalhada para encontrarmos uma frase que anuncia um desconforto doloroso em relação ao estímulo visual: “acendendo um abajur fica forte demais e dói”.

Por outro lado, o sentido de nocicepção anuncia uma hipossensibilidade que dificulta a percepção da dor, principalmente quando está distraída sentindo uma textura: “olho para a madeira no verso do tampo da mesa (…) passo o dedo. É áspera. Esfrego o dedo na madeira para a frente e para trás cada vez com mais força até que uma farpa me fura”.

O sentido de propriocepção em Caitlin é pouco modulado e é por isso que ela usa os estímulos de pressão e localização do seu corpo como um recurso de regulação nos momentos em que precisa se acalmar. Nesses momentos “ponho a cabeça debaixo da almofada do sofá (…) eu sinto o peso macio da almofada sobre a minha cabeça e avanço ainda mais, até meus ombros e peito também poderem entrar e sinto um peso em cima de mim que me prende e impede de flutuar”.

Isso quer dizer que, entender o quanto essa sensação é importante para Caitlin pode ajudá-la a encontrar novas saídas para diversos momentos do seu dia a dia, além de aumentar as possibilidade de ela criar recursos que desenvolvam esse sentido. Assim como compreender como ela reage ao toque humano pode deixar as situações sociais menos agoniante: “faz cafuné na minha cabeça por cima do suéter. Quando é por cima do suéter eu não me importo. Do contrário não gosto que ninguém encoste em mim”.

Ela também sente os cheiros de forma tão precisa que é capaz de distingui-los olfativamente mesmo quando estão juntos: “o tecido xadrez verde tem o cheiro do suor de papai e das meias de Devon e das minhas pipocas”. E, além disso, identifica o cheiro exato do produto que a pessoa está usando: “ela ainda está cheirando a Sabonete Líquido Dial”.

Quanto ao sentido gustativo, Caitlin tem particularidades na hora de se alimentar: “separo os ingredientes da salada e faço uma pilha de folhas verdes no meu guardanapo. Deixo o purê de maçã e a Pop-Tart totalmente separados porque não gosto de comida misturada”.

Percebem como faz diferença compreendermos como uma pessoa sente? Todo esse turbilhão de sensações pode deixar a pessoa mais distante de outras pessoas, tentando autorregular-se e diminuir o desconforto dessas situações. A partir dessas compreensões podemos ter diversas ações específicas que ajudam seu processo de desenvolvimento e que ao longo da vida trazem autonomia para seu processo de lidar com esse mundo cheio de estímulos que vivemos.

Tem muito para ser feito, é uma rede complexa que podemos cuidar e desenvolver todos os lados. Se precisar de ajuda conte conosco.

Se você conhece alguém com autismo, saiba que existe um serviço especializado chamado Acompanhamento Psicológico do Espectro Autista para ajudar em todos as fases e aspectos do processo: identificar e desenvolver um plano personalizado para trabalhar as potencialidades e superar as limitações de cada pessoa com autismo e ainda orientar pais, escola e todos os profissionais envolvidos sobre seu funcionamento e suas características únicas.

Clique aqui e converse com uma de nossas psicólogas para conhecer mais sobre o serviço de Acompanhamento Psicológico do Espectro Autista.

Doralina Enge Marcon

Doralina Enge Marcon

Psicóloga, CRP 12/10882

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