Há alguns dias estive em um “Papo Rápido” com o jornalista do Diário Catarinense, Rafael Martini, falando sobre violência contra a mulher. Reconheci que refletir sobre esse tema, sendo mulher, me desafia porque desejo ir além da visão de uma das partes. Chamou muito minha atenção o fato de que o parceiro (marido ou namorado) é o responsável por mais de 80% dos casos de violência contra mulher, conforme dados de pesquisa da Fundação Perseu Abramo em parceria com o SESC (2010). É um número alarmante, que me fez perguntar: o que está acontecendo em nossas relações amorosas?
Ainda lembro o sentimento de inquietação que me invadiu quando entrei em contato pela primeira vez com um casal em situação de violência contra a mulher. Perguntava-me, o que estava acontecendo com aquelas duas pessoas? Enquanto ele sentia vergonha por não ter resistido ao impulso de agredir, ela culpava-se pela possibilidade de ter causado a perda de controle que resultou na agressão. Meus pensamentos me induziam a concluir que o homem abusava do poder da força física masculina e a mulher era frágil e vulnerável diante dele.
Superficialmente, é exatamente isso que acontece, uma vítima e um agressor. Mas o que pode haver além disso? O que eu sentia era que ambos estavam frágeis, impotentes e em desespero diante da situação que viveram. Apesar dos comportamentos serem opostos, havia sentimentos comuns, os dois estavam angustiados e com medo de perderem um ao outro. Estava diante de uma relação adoecida, em que ora havia uma cumplicidade e parceria diante dos desafios da vida, ora todo o amor, respeito e admiração davam espaço para acusações, humilhações, ameaças e agressões dos dois, um para com o outro.
As relações vão se tornando complexas a este ponto gradativamente, e a raiz deste processo está em concepções sociais comuns, que todos conhecemos, como, por exemplo, a ideia de que necessitamos de um parceiro ou parceira para a vida. O que parece é que precisamos de alguém porque não somos completos sem um parceiro, como se nos faltasse algo.
Algumas vezes, as pessoas se sentem frágeis (geralmente as mulheres) e se atraem por aqueles que oferecem a segurança que lhes faz falta, submetendo-se a condições muitas vezes desfavoráveis para que esta relação amorosa aconteça. Outras vezes, as pessoas (geralmente os homens) sentem satisfação em se responsabilizar pelo outro, em direcionar a vida de outra pessoa e buscam parceiros que atendam às suas condições de cuidado.
As pessoas procuram relações complementares até que comecem os primeiros conflitos, porque dificilmente um vai encaixar como uma peça de lego no outro, completando aquilo que falta. Nascem insatisfações mútuas, e, com elas, as exigências e cobranças. A cada decepção, indiretas veladas; desenha-se um ciclo onde um culpa o outro pelos conflitos, a angústia cresce e alguém assume a responsabilidade para apaziguar a situação (geralmente as mulheres).
A relação claramente não vai bem, as situações de conflito vão se tornando volumosas e gradativamente mais intensas e graves. Seguem-se tentativas desesperadas de resolver os problemas conjugais, até chegar a ações que as pessoas nem sequer imaginavam ser capazes: ameaças, agressões e o extremo da violência física.
Neste momento do processo, chama-me a atenção que muitos casais em situação de violência com os quais tive contato, sentem muita dificuldade de viver sozinhos. Embora reconheçam a relação como algo nocivo, são invadidos pelo desespero ao se imaginarem sós e não conseguem se separar. Sentem necessidade de “ter” um ao outro para existir. As pessoas vão ficando na relação e achando que a vida se esvai gradualmente, percebem-se cansadas, sem energia e frustradas, ao passo que se irritam e culpabilizam o outro, realimentando o ciclo de conflito.
O que estamos fazendo com nós mesmos e com nossas relações? Qualquer um poderia viver esse processo, apesar de ser difícil reconhecer. Para quebrar esse ciclo é preciso ter coragem para reconhecer as consequências das escolhas que fazemos nas relações, inclusive as prejudiciais. A responsabilidade pelo que sentimos, escolhemos e fazemos pode transformar o significado de uma relação amorosa. Cada uma das nossas escolhas constrói diariamente a pessoa que nos tornamos e o significado da relação em que estamos.
Podemos construir relações onde estejamos íntegros (e não perfeitos), reconhecendo que a vida é um processo que nunca está pronto e, ainda assim, podemos ser companheiros. É exatamente quando nos sentimos potentes para transformar que despertamos a vida que existe no outro, construindo autonomia. Se desejamos transformar as relações de abuso veladas em que muitos estamos, precisamos nos tornar responsáveis por nós mesmos e, assim, despertar nossos parceiros e parceiras para também cuidarem de si, reconhecendo seu potencial para gerenciar a própria vida ao nosso lado.
Nas relações nas quais é possível compartilhar, eu não preciso do outro, eu escolho estar com o outro! E você, o que escolhe?